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A árdua peregrinação dos desabrigados

Breves considerações sobre a gestão urbanística de Curitiba-PR




Data da Publicação da Coluna : 19/03/2022 por Leandro Estevão Gomes


No Brasil, as escassas políticas públicas de acesso a moradia vêm demonstrando ineficiência, verifica-se que a população brasileira, com os baixos salários percebidos, sequer possuem recursos para custearem despesas de aluguel, fato que se intensificou na pandemia de COVID-19, que cumulado com o desemprego em massa, acabou por impulsionar os populares a procurarem ocupações irregulares a fim de garantirem abrigo . A desumanidade do capitalismo se impõe, e o objetivo do gestor público direciona-se a decisões que beneficiam apenas uma pequena minoria que anseia por crescimento patrimonial.

A procura por moradia que contemple o poder aquisitivo dos vulneráveis é algo natural e de fácil compreensão, afinal, ante a inércia do poder público em garantir o direito humano à moradia, pessoas desprovidas de recursos financeiros são praticamente obrigadas a residirem em periferias e em ocupações irregulares carentes de condições adequadas de vida. Estas ocupações, além de constituírem-se em locais de violação de direitos humanos fundamentais, pois dada a ociosidade estatal em não garantir a função social e ecológica da terra, o próprio gestor municipal discrimina ilegalmente  estas comunidades quando os privam de terem acesso a água e saneamento economicamente acessíveis, bem como são impedidos ou tem o acesso limitado aos demais equipamentos de concretização de políticas públicas, como as de saúde, educação, energia, entre outras, com a agravante de que nestas regiões seria imprescindível e estratégica a atuação do Poder Executivo em benefício ao povo. Ou seja, as ocupações populares são locais intencionalmente desamparadas de recursos públicos, devendo os moradores optarem por ficarem em situação de rua ou dispenderem de recursos financeiros construindo suas casas com o risco de perderem tudo em eventual despejo.

Curitiba gentrificada constitui-se em urbe que desde o seu Plano Diretor beneficiou o mercado imobiliário em detrimento da moradia social, fato que ensejou a formação destas ocupações irregulares em áreas isoladas do município e até mesmo da região metropolitana. No geral, a falta de planejamento das cidades é uma chaga que acompanha o desenvolvimento da maioria das cidades, prioriza-se muito a área central e as áreas nobres, sendo que as áreas marginalizadas são praticamente abandonadas, fato que acaba privando as pessoas de terem direito a uma moradia digna que ofereça mobilidade urbana realmente eficiente que contemple a oferta de transporte público adequado, garanta acesso aos equipamentos públicos fundamentais, dentre outros.

Leitores, ainda não caiu a minha ficha com o ocorrido na ocupação Nova Guaporé I, pra quem não conhece Curitiba explico que a ocupação Nova Guaporé I outrora localizava-se na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), cerca de 300 famílias ali habitavam, ocorre que na data de 17 de dezembro de 2020, sem prévia notificação, estes moradores foram pegos de surpresa após cumprimento de mandado de reintegração de posse em desfavor dos habitantes, registrem que o Oficial de Justiça concedeu prazo de apenas uma hora para que os ocupantes deixassem a área com seus pertences. A reintegração de posse aconteceu em total desacordo com a Recomendação Nº 63 de 31/03/2020 do CNJ, visto que a ação ocorreu durante estágio de total descontrole da pandemia de COVID-19  e que medida desproporcional foi imposta mesmo com o empenho da Defensoria Pública do Estado do Paraná e da comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep).

Com o despejo, as famílias ficaram desamparadas após o incidente, sendo que a maioria delas resolveram ocupar irregularmente, por necessidade, uma nova área localizada no bairro Campo Comprido em Curitiba. Naturalmente a região ficou conhecida como Nova Guaporé 2, em virtude de que grande parte das famílias migraram para a referida área. Segundo Relatório Social realizado por Assistente Social do Ministério Público do Estado do Paraná a fim de instruir os autos 0026770-11.2020.8.16.0001 acerca de novo requerimento de reintegração de posse, existe no local 130 famílias, com destaque a existência de aproximadamente 64 crianças, 26 adolescentes, 20 idosos, 3 pessoas com deficiência, 1 gestante e ainda a presença de 15 haitianos.

A fatídica insegurança jurídica é situação permanente para aqueles que são condicionados as fatais contendas de discussão de mérito de posse e de titularidade de propriedade, dificilmente o proprietário de um imóvel desfuncionalizado vai ceder ao seu direito de exercer domínio sobre seu patrimônio e muitas vezes a legislação está favorável a uma minoria em detrimento da coletividade, sendo que mesmo com o passado que persegue esta casta, o Estado ainda se omite em alentar estes indivíduos.

Ainda acerca do caso das ocupações Nova Guaporé, além do medo diuturno em serem vítimas de nova reintegração de posse cumprida com todo o aparato repressivo estatal, pessoas vivem sob condições subumanas quando sujeitam-se a viverem em locais notadamente insalubres, em que pese os moradores considerem satisfatórios os atendimentos pelos equipamentos públicos de assistência social como o CRAS.

Acerca do fornecimento básico de energia elétrica e água potável em ocupações irregulares, no exemplo da nova ocupação mencionada, o MPPR também exarou parecer para que a população tenham garantidos estes direitos, respaldados, inclusive, pela Nota Técnica Conjunta n. 01/2019 emitida pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo e Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, visto que tal direito evidencia-se em qualquer conglomerado urbano, seja ele irregular ou não.

Em suma, o Estado em qualquer parte do país não garante o direito da população em ter acesso a moradia adequada, sequer garantem a posse temporária para posterior aplicação de políticas públicas de acesso a moradia e direitos correlatos. O Poder Judiciário muitas vezes não tem opção em ações possessórias, visto que a lei beneficia o proprietário em detrimento da coletividade, porém existem casos em que fica evidenciada a inobservância ao princípio da função social da propriedade, principalmente em casos em que os proprietários deixam o imóvel praticamente inutilizado visando auferir rendimentos financeiros maiores no futuro, razão pela qual optam por não construirem ou deixarem que construam em seus terrenos, nestes casos há razoável dever do poder público desapropriar referidos locais, mas dificilmente assim o fazem, em contrapartida os desabrigados, cientes das irregularidades do imóvel decidem ocupá-los, porém são inseridos em disputas territoriais que decorrem por anos e quase sempre com resultados desfavoráveis aos vulneráveis. A ocupação irregular é fazer justiça com as próprias mãos, por isso das incertezas em fixar-se em local alheio as normas pátrias ou desassistidos por algum órgão estatal ou entidade que promova justiça.

O Estado precisa resgatar o seu dever constitucional e garantir a sadia qualidade de vida à população brasileira, preservando o meio ambiente e tudo aquilo que o circunda. Obviamente sou um visionário que ainda acredita em políticos que exerçam com rigidez seu dever legal observando minuciosamente as legislações que versam sobre cidades, propriedades imobiliárias e regularização fundiária e enquanto houver uma pessoa acreditando no bom senso dos políticos, os auspícios para um futuro ideal nunca vai deixar de existir.

 

 

* Leandro Estevão Gomes é bacharel em direito pela PUCPR, pós-graduando em direito ambiental e gestão pública. Atua como residente jurídico junto ao Departamento de Polícia Penal do Estado do Paraná (DEPPEN/PR) - Complexo Social de Cruzeiro do Oeste/PR.



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Leandro Estevão Gomes\

colunista


Leandro é formado em direito pela PUCPR, pós-graduando em direito ambiental pela UFPR e pós graduando em gestão pública pela UEPG. Também sou estudante de graduação em Letras/ L ibras – Bacharelado – polo de Cruzeiro do Oeste pela UNIOESTE.