A falácia presidencial da economia x vida
Ao final do texto são apresentadas 32 medidas concretas para enfrentamento da pandemia do coronavírus (COVID-19) e da crise econômica.
Data da Publicação da Notícia : 26/03/2020 19:30 por Fabio Lemes – Economista, professor do IFSUL
Este texto tem como objetivo analisar a situação de combate a pandemia do coronavírus (COVID-19) e, também, apresentar às pessoas, que tenham um mínimo de sensatez neste debate, de que a crise econômica sim é séria, sim ficará mais grave.
A evolução das medidas de combate a pandemia do COVID-19, num primeiro momento, apontou um certo caminho unitário do país no enfrentamento de um problema concreto. Medidas de isolamento social foram adotadas por várias entidades públicas, privadas e governantes, conforme recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde no Brasil, após 11/03/2020. Nesse momento, se constituiu um consenso de que a melhor estratégia era reduzir a interação social ao mínimo necessário. Claro que, desde o início da pandemia no país, a maioria das pessoas entendeu que seria impossível parar “tudo”. Não é possível o isolamento total, primeiro porque muitas profissões são essenciais ao dia-a-dia, para além dos profissionais de saúde; segundo, porque dada a precarização do trabalho e crise econômica, com suas consequências no emprego e renda, é impossível uma parcela do povo - que depende do tralho informal, sem nenhum direito social - ficar em quarentena. Isto era evidente.
Os pronunciamentos do Presidente da República, seja nos espaços oficiais do governo ou nos canais próprios de sua pessoa, foram errantes, desde ignorar a importância das medidas, a dizer que apoiava seu ministro da saúde. No pronunciamento oficial do dia 24/03/2020, contudo, o presidente assumiu abertamente uma posição contrária as medidas mais efetivas de combate a pandemia. O presidente, nesse discurso, defendeu o fim do isolamento para quem não for “grupo de risco”, indo na contramão do que estão fazendo governantes mundo inteiro e mesmo os governadores e prefeitos no Brasil. Minha leitura sobre as motivações aparentemente insanas de Bolsonaro estão disponíveis aqui: http://www.norters.com.br/noticia/5785/economia-e-politica/vida-x-morte-%E2%80%93-a-cartada-de-bolsonaro
O alinhamento mais claro de Bolsonaro, a partir deste pronunciamento, buscou colocar um falso debate entre economia versus vida, como se enfrentar a pandemia da forma recomendada pelos especialistas fosse causar um desastre para uma economia que andava em ‘céu de brigadeiro’. No dia seguinte ao pronunciamento, uma parcela significativa da população se manifestou nas redes sociais indignadas com o discurso, mas os defensores deste não foram poucos. Alegavam os defensores do presidente que agora a prioridade é salvar a economia, independente das vidas que possam ser perdidas, pois o custo de salvar estas não compensa as que serão perdidas depois.
Quem diz isto não entende nada de economia, e não esqueçamos que o presidente reiteradamente afirma não entender deste assunto (https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/06/01/ja-falei-que-nao-entendia-de-economia-diz-bolsonaro-indagado-sobre-pib.htm). Poder-se-ia alegar que sua equipe, comanda por Paulo Guedes entende, mas os resultados da economia brasileira antes do COVID-19 não têm evidenciado isto. E o discurso do presidente levantou críticas das mais variadas matizes de economistas brasileiros, que acham no mínimo equivocado minimizar a pandemia pela atividade econômica (https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/25/economistas-criticam-posicionamento-do-governo-bolsonaro-frente-a-pandemia-do-coronavirus.ghtml).
Temos que sair do falso debate entre economia x vidas e trazer o debate para o que realmente importa que é relembrar que a atividade econômica deve estar a serviço da vida. Não se deve medir o resultado da economia se não pela melhora das condições de vida de uma população.
E sim, é certo que a pandemia do COVID-19 agravará muito a situação econômica do país (e do mundo). E para isto, é necessário adotar políticas econômicas anti-cíclicas, que possam reverter a crise. Lembrando que a pandemia, no caso brasileiro, não criou a crise econômica, vem apenas a agravar, um quadro de recessão que vem sendo caracterizado por economistas como uma nova década perdida.
Para se ter uma noção da magnitude desta crise onde mais importa a população, que é no trabalho e renda, recomendo o artigo “Desemprego empobrece, adoece e paralisa milhões”, de Edson Carneiro Índio (http://www.laurocampos.org.br/2020/01/20/desemprego-empobrece-adoece-e-paralisa-milhoes/) que apresenta a situação da crise antes do COVID-19.
Setores importantes da sociedade brasileira já se debruçava intelectualmente, sobre a crise econômica antes do advento da pandemia. Destaco setores políticos de esquerda, mas também outros agentes da sociedade, já vinham apresentando medidas econômicas, que agora se tornam ainda mais essenciais, ao ponto que até mesmo representantes políticos do espectro da direita estarem seguindo neste curso. Nesse sentido, não há por que desestimular o isolamento social, se as medidas econômicas adequadas forem adotadas.
Em agosto de 2019, o Partido dos Trabalhadores apresentou o “Plano Emergencial de Emprego e Renda” (https://pt.org.br/conheca-o-plano-emergencial-de-emprego-e-renda/), com um conjunto de medidas que, se postas em prática, poderiam contribuir na criação de 7 milhões de postos de trabalho. Na mesma linha de defesa dos trabalhadores, sobretudo dos mais vulneráveis pelo desemprego ou subemprego, o deputado federal Glauber Braga (PSOL/RJ) apresentou em outubro de 2019 o Projeto de Lei 5491/2019, que instituiu o “Fundo Nacional de Garantia de Emprego” (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2224946) visando assegurar o pleno emprego com estabilidade de preços e redução das desigualdades sociais e regionais, bem como o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Estas proposições estão longe de serem perfeitas, mas são contribuições significativas e relevantes para enfrentar a crise econômica brasileira e se somam a diversas outras iniciativas de outros segmentos políticos.
A partir do agravamento da crise econômica pela pandemia do COVID-19, o Governo Federal já apresentou suas medidas, que em síntese são no curto prazo redirecionar recursos já previstos no orçamento (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/16/Pandemia-quais-as-a%C3%A7%C3%B5es-econ%C3%B4micas-do-governo-brasileiro) e propõe, como saída mágica, aprofundar as reformas (como a administrativa) que diminuem a capacidade do estado de agir frente a esta e qualquer outra crise, precarizando os serviços públicos, “chilenizando” o Brasil (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/03/09/internas_economia,833116/guedes-quer-avancar-com-a-reforma-administrativa-ainda-nesta-semana.shtml).
Uma das medidas pontuais que ganhou repercussão na mídia é a redução dos salários dos servidores públicos, para contribuir com os recursos de combate a crise (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/24/maia-diz-que-partidos-articulam-proposta-de-reducao-de-salario-de-servidores-e-parlamentares.ghtml). Mesmo com algum valor simbólico aparente, é uma medida que só reforça a crise, pois diminui poder de consumo de parte da população, o que terá efeito no emprego e renda depois. Medida concreta para este momento e com maior justiça fiscal é o projeto 183/2019, do Senador Plínio Valério, do PSDB/AM, que propõe taxar as grandes fortunas (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/23/senador-sugere-taxar-grandes-fortunas-para-bancar-combate-ao-coronavirus), o que daria um retorno muito maior no curto prazo para o orçamento de combate ao COVID-19.
Caso quem lê este texto tenha aversão a qualquer proposta econômica apresentada por representantes políticos, quero finalizar o texto apresentando medidas concretas que foram propostas em 20/03/2020, por um conjunto de professores da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS (https://www.ufrgs.br/fce/professores-da-ufrgs-lancam-manifesto-com-diretrizes-para-combate-a-pandemia-do-novo-coronavirus/). O manifesto, que já conta com assinatura de vários intelectuais traz medidas para enfrentamento da pandemia e as medidas para enfrentar a crise econômica. Apresento abaixo as 32 medidas apresentada no documento:
Medidas imediatas para suporte ao setor da saúde
1. Disponibilizar recursos novos, e não apenas por remanejamento de rubricas do orçamento, no montante necessário ao eficaz combate da pandemia pelo sistema de saúde.
2. Adotar estímulos governamentais de demanda – compras de equipamentos, kits de testes e outros produtos, etc. – ao complexo industrial de saúde e às instituições e laboratórios da área de saúde.
3. Adotar estímulos governamentais de oferta – forte aumento dos investimentos e contratações emergenciais de pessoal, inclusive a contratação de estudantes da área de saúde que estejam cursando o último ano de sua graduação – ao complexo industrial de saúde e às instituições e laboratórios da área de saúde.
4. Realizar compras e celebrar acordos internacionais para a provisão adequada de produtos de saúde.
5. Reconverter, eventualmente, empresas para a produção de bens de saúde, como respiradores, kits de testes e outros.
6. Adaptar locais como navios da marinha, hotéis e outros para fins de atendimento médico, descongestionando setores emergenciais dos hospitais.
7. Disponibilizar obrigatoriamente, se necessário, toda a capacidade instalada de serviços de saúde nos setores privado e público.
8. Transferir recursos às secretarias estaduais e municipais de saúde para fins de ampliação de UTIs em antecipação ao pior cenário de evolução da pandemia.
9. Prover assistência especial, inclusive financeira, aos profissionais da saúde.
10. Aplicar formas de proteção específica a moradores de aglomerados insalubres – ampla orientação sobre medidas de prevenção, capacitação urgente de agentes comunitários de saúde e de assistentes sociais para proteção do COVID-19, fornecimento gratuito de EPIs (máscaras etc.).
Medidas de sustentação do emprego e da renda no curto prazo enquanto durar a pandemia
11. Adotar iniciativa de sustentação da renda para empregados do setor privado, com postergação do recolhimento de impostos.
12. Conceder empréstimos com prazos dilatados e com juros zero para a manutenção de pequenos empreendimentos e seus postos de trabalho, a ser rapidamente operacionalizada pela rede de bancos públicos.
13. Induzir as empresas a conceder licenças remuneradas aos trabalhadores, com subsídio público e manutenção da renda, dando especial atenção às trabalhadoras com responsabilidades na provisão de cuidados de crianças, idosos e enfermos e em afazeres que sustentam o cotidiano das familiais brasileiras.
14. Conceder isenções fiscais a trabalhadores autônomos e microempresários.
15. Instituir programa de renda básica universal no valor de um salário mínimo mensal de modo a atingir 50% da população, com particular atenção às trabalhadoras informais sobrecarregadas com encargos familiares e especialmente vulneráveis nesse momento.
16. Ampliar o valor do bolsa família em 20 %.
17. Suspender o pagamento das dívidas dos estados por quatro meses e, nos casos mais graves, garantir recursos a que estados paguem os salários de seus servidores em dia.
Medidas para assegurar disponibilidade de serviços de utilidade pública e habitação enquanto durar a pandemia
18. Suspender o pagamento de serviços de utilidade pública como energia, água, gás e telecomunicações.
19. Suspender os cortes de fornecimento por falta de pagamento nos serviços de utilidade pública como energia, água, gás e telecomunicações.
20. Suspender as execuções hipotecárias e os despejos por não pagamento de alugueis, inicialmente pelo período de seis meses.
Medida de apoio a empresas fortemente atingidas pela pandemia e de garantia do abastecimento dos bens de primeira necessidade
21. Conceder isenções fiscais e dilatação de pagamento de tributos para pequenos negócios diretamente atingidos pela pandemia.
22. Criar linhas de crédito para micro e pequenas empresas e microempreendedores individuais, com baixo custo e prazos adequados, condicionando as empresas a manterem os empregados.
23. Monitorar de modo permanente as condições de produção e abastecimento de bens de primeira necessidade, especialmente quando direcionados à população carente.
Medidas para recuperação e sustentação da economia
24. Intervir fortemente no mercado de câmbio, usando métodos eficazes para sustar a sangria de reservas.
25. Instituir imposto sobre lucros dos bancos e elevar excepcionalmente a cobrança de impostos sobre ganhos em operações day trade, sem prejuízo de outras medidas tributárias que não penalizem a produção e a população de menor renda, a fim de mitigar os efeitos sobre o erário público dos custos associados ao gerenciamento dos efeitos da pandemia.
26. Ampliar o nível dos investimentos públicos, sobretudo em infraestrutura e energia, a fim de mobilizar recursos produtivos ociosos em decorrência da crise.
27. Realizar programa amplo de investimento em saneamento a fim de atender a totalidade da população brasileira em prazo definido, com mobilização de recursos públicos e privados.
28. Retomar a atuação do BNDES como indutor e agente financiador de investimentos privados em formação de capital fixo com condicionalidades à geração e/ou manutenção de empregos.
29. Reativar o BNDESPar com ênfase de atuação em setores geradores de emprego, inovadores e de infraestrutura.
30. Ampliar a atuação da FINEP como indutor e agente financiador de investimentos públicos e privados em inovação.
31. Revogar a chamada “lei do teto” (EC 95) dos dispositivos constitucionais e promover, após a superação da crise, ampla rediscussão em âmbito infraconstitucional conjuntamente a uma reforma tributária.
32. Suspender a tramitação da chamada “PEC emergencial” e de demais medidas que implicariam fortes restrições ao combate à pandemia e à recuperação da economia brasileira.
Creio que está claro que a preocupação com a crise econômica e a apresentação de medidas concretas são pautas que os setores críticos ou opositores ao atual governo o fazem há bastante tempo. Essas propostas agora são reforçadas pelo apoio da intelectualidade que, de forma bem efetiva, vem apontando caminhos. Os rumos para o país certamente não se resumem a estas propostas, mas elas respondem com muita competência as falácias presidenciais que tentam colocar em oposição a economia e a vida.
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Fabio Lemes – Economista, professor do IFSUL
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